Em minhas consultas, tenho observado que as pessoas de um modo geral, tem um entendimento equivocado a respeito dos homens e mulheres que decidiram se espiritualizar. As incompreensões são inúmeras, principalmente dentro do próprio lar.
A confusão começa quando passam a considerar que só porque alguém decidiu seguir um caminho espiritual, abandonou instantaneamente as tendências anteriores e a partir do minuto seguinte, já é nova criatura. Pode até se tornar nova criatura nas intenções, no compromisso, mas tendências negativas acumuladas por muitos anos não desaparecem como num passe de mágica. O viciado em sexo continuará viciado em sexo, o alcoólatra terá que evitar dia após dia cair na tentação de um copo, o que se encoleriza continuará sentindo dentro de si as forças motrizes da explosão, a pessoa que foi violentada continuará sentindo no imo da alma a desconfiança querer dominar as relações, e assim sucessivamente. A natureza não dá saltos. As mudanças são gradativas, lentas, dia após dia, de modo que as quedas sejam cada vez mais espaçadas, até que um dia, num ponto em algum lugar do futuro, a pessoa deixe de ser nova criatura apenas nas intenções, e o seja também de forma plena, colhendo frutos saborosos. Se hoje meu pomar está devastado por pragas e todas as árvores mortas por eu não o ter dedicado cuidado e atenção, não basta simplesmente eu decidir que vou cuidar dele para que no dia seguinte eu já tenha frutos saborosos. A decisão é louvável e o passo mais importante de todos, mas há de que eu trabalhe arduamente para arrancar as árvores mortas dos erros do passado; revolver a terra para desfazer a crosta das incoerências que se formaram, permitindo que assim circulem melhor a água e o ar das novas diretrizes de vida; desfazer os aglomerados naturais do revolvimento; adubar a terra com os fertilizantes redentores do novo objetivo; para só então plantar as sementes. E a coisa não termina por ai: depois de plantadas as sementes, todo o cuidado é necessário para regar o solo e garantir a absorção da água da nova realidade, a germinação da semente com essa absorção, o rompimento da casca, o surgir de dentro do solo da escuridão, o enraizamento firme no chão com foco na luz que vem do alto para a fotossíntese da alma, e só algum tempo depois (meses ou anos) é que a planta se torna frutífera, a árvore se torna frondosa. Ninguém produz frutos doces automaticamente só porque iniciou o processo. A doçura do fruto demora.
Outro grande erro que se comete, é imaginar que pessoas já espiritualizadas há muito tempo, não podem perder o equilíbrio, nem se aborrecer, e menos ainda se perder da “santidade” que abraçaram. Talvez a imagem que a mídia transmita de um Gandi calmo e sereno, de uma Madre Tereza tranqüila e pacata, ou de um Chico Xavier que aceitava cuspes na face sem reagir com violência, tenham impregnado de engano o entendimento das pessoas sobre quem já é espiritualizado há muito tempo. Eu poderia aqui contar dos exageros familiares de Gandi, dos momentos de fúria de Madre Tereza, e até das brigas íntimas no seio familiar de Chico Xavier, mas qualquer coisa dita nesse sentido seria colocada em cheque pela ausência de elementos factíveis. Então vamos falar de um exemplo emblemático, insuperável e público: Jesus (Deus). Eu não conheço quem tenha sido mais espiritualizado que o Mestre de Nazaré. Pacato, sereno, manso e humilde. O modelo a ser seguido. Pois bem, Esse Homem, em toda a Sua absoluta espiritualização e abnegação, ao se deparar com um grupo de homens deturpando os valores de Seu Pai, enfureceu-se. E não sou eu que estou dizendo não: está escrito na bíblia. Quem quiser pode conferir: Marcos 11:15-19; Mateus 21:12-17; Lucas 19:45-48; João 2:13-16. O Filho de Deus, o Mestre Maior, o Cristo, Homem mais Perfeito que pisou no planeta, enfureceu-se quando entendeu que atentavam contra o próprio Pai.
“Estava próxima a páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. Achou no templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas, e também os cambistas sentados; e tendo feito um azorrague de cordas, expulsou a todos do templo, as ovelhas bem como os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas e disse aos que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma casa de negócio. Então se lembraram seus discípulos de que está escrito: O zelo da tua casa me devorará.”
Se até Jesus enfrentou com severidade uma situação como essa expulsando aproveitadores, não seria coerente exigirmos de um ser “espiritualizado” que se comportasse com a “serenidade de pedir por favor” o tempo todo. Qualquer pessoa nos primeiros passos da espiritualização ou já espiritualizada (até mesmo o Cristo) diante de seus limites, entra em modo de guerra.
Jesus chicoteou pessoas para defender seu Pai, a casa de Seu Pai, a honra de Seu Pai; será lícito nos considerarmos moralmente capazes de julgar a quem quer que seja quando agem na defesa do que é importante para eles? Salvo os naturais exageros das psicopatias humanas, não.
Quem pensa que o ser espiritualizado é o fantoche que se sujeita a todas as intempéries do mundo com total passividade, ainda não entendeu nada sobre espiritualidade. Emmanuel, o nobre mentor de Chico Xavier, no livro “Os Mensageiros”, preambula a obra dizendo:
"Contam as tradições populares da Índia que existia uma serpente venenosa em certo campo. Ninguém se aventurava a passar por lá, receando-lhe o assalto. Mas um santo homem, a serviço de Deus, buscou a região, mais confiado no Senhor que em si mesmo. A serpente o atacou, desrespeitosa. Ele dominou-a, porém, com o olhar sereno, e falou:
- Minha irmã, é da lei que não façamos mal a ninguém.
A víbora recolheu-se, envergonhada. Continuou o sábio o seu caminho e a serpente modificou-se completamente. Procurou os lugares habitados pelo homem, como desejosa de reparar os antigos crimes. Mostrou-se integralmente pacífica, mas, desde então, começaram a abusar dela. Quando lhe identificaram a submissão absoluta, homens, mulheres e crianças davam-lhe pedradas. A infeliz recolheu-se à toca, desalentada. Vivia aflita, medrosa, desanimada. Eis, porém, que o santo voltou pelo mesmo caminho e deliberou visitá-la. Espantou-se, observando tamanha ruína. A serpente contou-lhe, então, a história amargurada. Desejava ser boa, afável e carinhosa, mas as criaturas peseguiam-na. O sábio pensou, pensou e respondeu após ouví-la:
- Mas, minha irmã, ouve um engano de tua parte. Aconselhei-te a não morderes ninguém, a não praticares o assassínio e a perseguição, mas não te disse que evitasses de assustar os maus. Não ataques as criaturas de Deus, nossas irmãs no mesmo caminho da vida, mas defende a tua cooperação na obra do Senhor. Não mordas, nem firas, mas é preciso manter o perverso à distância, mostrando-lhe os teus dentes e emitindo os teus silvos."
Ao "sábio", ao "santo", ao "espiritualista", ao seguidor de Cristo, cabe o dever de manter distante toda perversidade, todo o erro, toda a mácula, todo o descaso, toda má influência e toda irresponsabilidade. Não é preciso morder e nem ferir fisicamente a ninguém, mas não é lícito impedir que os guerreiros da luz deixem de mostrar os dentes ou emitir seus silvos contra todo aquele que comprometer sua cooperação na Obra do Senhor da Vida.
Não se trata de fazer apologia à conflitos familiares nascidos na expectativa de que o ser espiritualizado se torne dopado para as realidades da vida, mas sim, de explicá-los para evitá-los, "setando" a expectativa.
"Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o filho e seu pai, entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra, assim os inimigos do homem serão os da sua própria casa. (Jesus, pelo evangelho de Mateus 10:34-36)"
Não precisamos viver em um universo familiar de conflitos e guerras. Para isso, basta que cada um assuma seu papel (a missão que veio cumprir na vida) executando assim os desígnios celestes e evitando não apenas aborrecimentos familiares,mas em todos os outros setores da vida. A Kabbalah é uma das formas de descobrirmos o que viemos realizar, cada um de nós, individualmente, nesse planeta, e até nesse grupo familiar em que estamos inseridos. Basta executar o plano com disciplina, e a paz reinará. Pense nisso!
Autor: Antony Valentim